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  • Writer's pictureAna Paula Maciel Vilela

A Importância que as Coisas Têm


Imagem Unsplash por Maksym Kaharlytskyi




O salão abafado e o burburinho das muitas vozes me provocavam náuseas e, nesse momento, um estouro foi ouvido do lado de fora. Foi tão alto que um bebê dormindo no colo da mãe acordou aos berros. Todos saíram apressados e dei mais uma olhada para ele, ainda atônita de me ver naquela situação inimaginável, sentindo seu cheiro ainda no meu corpo, seu hálito quente na minha nuca, ouvindo sua voz murmurando nos meus ouvidos.

A avenida estava apinhada de gente, todos os velórios deviam estar apenas com seus mortos ocupando as vastas salas e, quem sabe, um acompanhante mais entristecido não surpreendido pela curiosidade de saber que lá fora a vida continuava.

— Surpreende-me vê-la aqui – um homem baixo, com voz rouca, se aproximou de mim com passos lentos. Encarei bem seus olhos apertados atrás dos óculos de lentes grossas e notei gotas de suor na sua testa. Senti um calafrio, era como se ele me conhecesse. Usava um terno barato, sapatos gastos e fumava um cigarro fedorento. Eu nunca havia visto aquele tipo antes.

Ignorei e virei as costas acompanhando os demais para dentro do salão depois de constatado que o estouro acontecera no poste da esquina.

Marta chegou aos prantos. Depois de ser amparada pelos familiares, me viu ao lado da pilastra e veio a meu encontro. Nos abraçamos em silêncio por alguns momentos. Ela sempre se destacava pela beleza e simpatia. Quando adolescentes, eu fazia muito esforço para ser como ela.

— Foi tão repentino! Estava tão bem. Almoçamos em família há dois dias!

— Sinto muito, Marta – consegui dizer.

Minhas mãos tremiam e meu corpo todo parecia não me obedecer, senti que se ficasse muito tempo ali poderia desmaiar. Aproveitei quando outras pessoas se aproximavam para consolá-la e me retirei.

Caminhei pelo saguão até a lanchonete e me dirigi a uma mesa próxima à porta. Pedi um suco gelado e fechei os olhos enquanto massageava minhas têmporas doloridas. Há muitos anos conhecia a família. Morávamos na mesma rua e íamos na mesma escola no ensino fundamental. Depois meu pai foi transferido e mudamos de bairro, para outro extremo da cidade, impossibilitando nossa convivência diária, mas em muitos finais de semana nos encontrávamos no sítio, nossos pais eram amigos e não nos desgrudávamos nessas ocasiões, os irmãos e eu. Flávio, Marcelo e Marta. Eles, gêmeos idênticos, ela, a caçula.

No sítio, havia o açude onde era permitido nadar, e foi lá nosso primeiro beijo. Inesquecível. Marta fora picada por um marimbondo, e enquanto Flávio corria com ela para casa, Marcelo me esperou. Tínhamos dezesseis anos. E foi o primeiro de muitos beijos ao longo da vida.

Terminei o suco refrescante naquela tarde de muito calor e me dirigi ao caixa. Ao olhar pela porta, percebi ele lá, me olhando, o homenzinho estranho do cigarro fedorento. Senti um frio percorrendo minha coluna e caminhei até ele.

—Está querendo me falar alguma coisa? Por acaso conheço você?

Ele sorriu com o cigarro no canto da boca.

—A senhora não me conhece, mas sei de tudo. Ninguém percebe, mas eu sei.

— Com certeza está me confundindo com alguém. Me dê licença e saia do meu caminho ou vou chamar os seguranças.

O sino soou na capela do lado do velório cinco, e contei sessenta e dois passos trêmulos que o salto dos meus sapatos fizeram ressoar enquanto me dirigi para os últimos momentos antes do corpo seguir para o crematório. Meu vestido azul parecia inapropriado para o evento fúnebre, mas havia levado pouca roupa, afinal, ficaria poucos dias. A trabalho.

Na noite anterior, nos encontramos novamente no hotel fora da cidade, onde eu estava hospedada. Jantamos, dançamos, conversamos e tomamos vinho. Lembramos da nossa infância, dos nossos pais, lamentamos o falecimento de amigos em comum e fizemos planos. Sempre fazíamos planos. Era bom. Nos alegrava. Naqueles momentos, eram possíveis, e mantínhamos nossas mãos entrelaçadas, com força, para que nada atravessasse nosso caminho. Não de novo.

A cerimônia foi triste e emotiva. Os filhos, dois homens, moravam distante e derramavam um choro contido por anos sem aparecer para uma visita. Um choro de culpa e arrependimento. Nenhuma distância dentro do mesmo país pode impedir os filhos de estarem com os pais, pelo menos uma única vez em um ano inteiro. Conversei com poucos amigos presentes e abracei alguns familiares mais próximos, quando olhei em sua direção mais uma vez. Foi difícil conter o desejo de ir até lá, tocar seu rosto, abraçá-lo. O que iam pensar? Nesta altura da vida, prestes a completar sessenta anos, eu ainda precisava me preocupar com o pensamento das pessoas. Inacreditável. Passei a vida assim. Me assustei ao constatar que logo seria eu dentro de um caixão e muitas coisas importantes haviam ficado estacionadas em algum lugar por receio do julgamento das pessoas.

Começava a chover quando me dirigi ao estacionamento. As luzes da cidade brilhavam e me senti muito só. Sempre sozinha, me alegrando nas entrelinhas, mas sempre sem o meu grande amor. Escolhi viver assim. Tive vários namorados, conheci lugares maravilhosos ao redor do mundo, fui dona dos meus desejos e fiz o que sempre quis e quando quis. Mas assistir a um filme de mãos dadas e ir dormir junto depois, raras vezes. Ele não quis deixar a família até os filhos ficarem independentes. Depois veio a doença da esposa. Ele nunca faria isso. E nem eu permitiria tamanha crueldade. E o tempo foi passando. Ela se recuperou e ele foi ficando. E fui ficando também. Sozinha.

Na véspera, nosso último encontro antes de meu retorno para casa, foi especial até sermos interrompidos pelo telefone tocando com insistência. Do hospital, Marta comunicava que sua cunhada, Vânia, havia sofrido um infarto fulminante após receber uma ligação telefônica. Eu sabia! Era ele, o homem estranho do velório. A mulher provavelmente desconfiava, pois, os encontros foram frequentes no último ano. Eu participava de reuniões mensais devido à fusão da empresa onde ocupava alto cargo com uma empresa na cidade.

O que aconteceria com nossas vidas agora? E se nosso caso viesse ao conhecimento de todos? E se soubessem sobre nossa responsabilidade por desencadear o infarto na esposa?

Preparei um banho de imersão, coloquei sais aromáticos e espumas na água, apanhei uma taça de vinho e, pela primeira vez em minha vida, não me importei com o que todos iriam pensar. Não mais.




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