Em Meio à Névoa
- Ana Paula Maciel Vilela

- Dec 2, 2020
- 2 min read
Updated: Apr 4, 2023
Q

Imagem Unsplash por Lital Levi @litallevy
Quando o carro estacionou em frente ao número seiscentos e trinta e oito, senti a boca seca e o coração em sobressalto.
Ela havia sido uma mulher independente, trabalhava e estudava à noite quando os filhos eram pequenos e algo que não suportava era a preguiça e má vontade de algumas pessoas. Incentivava as mulheres conhecidas e as filhas a serem independentes, terem seu próprio sustento e não dependerem de homem algum.
Em mim a baixa autoestima e excesso de cobrança foram crescendo na proporção de sua falta de paciência quando, no final da noite, ao chegar cansada da faculdade, lá estava eu aguardando, com o caderno de matemática nas mãos suadas, já no prenúncio do que aconteceria.
Paguei o motorista do táxi, atravessei a mureta baixa e alcancei o pequeno alpendre ladeado por um jardim que há muito perdera seu encanto.
Sentada em frente à televisão, minha mãe não se virou quando entrei, apenas fez um sinal com a mão pedindo silêncio quando lhe desejei bom dia.
A doença chegou sorrateira e muito camuflada com a falta de atenção que lhe era peculiar e por um período me agarrei a essa esperança de que os sinais que presenciávamos não seria nada sério.
Em cada aposento da velha casa, memórias cravadas nas paredes, no piso, nas telhas.
A água fresca do filtro de barro parecia evaporar em contato com a sequidão na qual me transformara.
Quando me sentei a seu lado durante o café da tarde, alisava o crochê largo que enfeitava a toalha estampada e elogiava a amiga que a havia presenteado e que falecera há alguns anos. Disse que encomendaria uma para mim. Em instantes foi envolvida em um silêncio profundo. Quando a convidei para caminharmos no quintal, com o cenho franzido, me perguntou quem eu era.
Procurando abstrair da dor que me machucava quando a percebia tão longe e envolta naquela densa névoa, caminhei pelas trilhas e lembranças de cheiros, risadas e cores invadiram o entardecer. Sentei-me no banco. Esperei.
Ao retornar para a casa e entrar pela porta da cozinha, a encontrei: surpreendida pelo sorriso largo e olhos brilhantes, me chamou pelo apelido carinhoso da infância, estendendo para mim os braços abertos.
A névoa dissipou-se por alguns momentos.
Me perdi e quis ficar indefinidamente dentro daquele abraço.
Crônica publicada na Revista Mulheres do Fim do Mundo
Setembro de 2020



Comments