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  • Writer's pictureAna Paula Maciel Vilela

Modo Silencioso

Updated: Dec 6, 2020



Foto Unsplash por Knopka Ivy @knopka


O carro derrapou na pista molhada e, por alguns metros, não se chocou na mureta do clube. Exausto, dirigia em alta velocidade para chegar em casa e se refugiar dos seus medos e angústias, como se isso fosse possível.

Seu martírio começara há seis anos após um namoro curto. Conheceu a esposa, líder nata, em um acampamento da igreja e foi atraído por suas características, opostas às suas. O que parecia ser uma personalidade extrovertida e organizada, tornou-se obsessiva, irritadiça e violenta com o passar dos anos.

Após uma série de abortos, o comportamento da esposa havia piorado bastante. Os amigos notaram, indicaram terapeutas, sugeriram hobbies e trabalhos voluntários, porém ela se esquivava e se afastava de todos.

Quando as humilhações passaram a agressões físicas, procurou o cunhado e agendaram com uma equipe na ala de psiquiatria do Hospital Geral para tentarem entender o que estava acontecendo. No dia da consulta, agrediu um médico, ofendeu a todos e atirou pela janela o copo com água que lhe ofereceram. Há seis meses internada ainda não aceitava vê-lo e seu quadro não apresentava melhoras significativas.

Mentalmente exausto cogitava pedir o divórcio depois de se encontrar com a família da esposa. Precisava de apoio. Sentia-se culpado de alguma forma e, embora não compreendesse bem toda a situação, as sessões de terapia começavam a ajudá-lo a dissipar as densas nuvens.

Desceu do carro e caminhou com cuidado sobre as folhas molhadas no crepúsculo. Sentiu, ao pisar na soleira, uma pontada no estômago. Indecifrável. Assim como seus sentimentos nos últimos tempos. Retirou os sapatos e atravessou o tapete grosso e macio para preparar um drink. Afrouxou a gravata e pegou o celular no bolso do paletó antes de atirá-lo no sofá.

Havia vinte e sete ligações não atendidas de seu advogado! Assustou-se. Depois da reunião que consumira toda a tarde, esquecera de reverter o modo silencioso. Ouviu a primeira mensagem onde era informado da fuga de três pacientes do hospital sendo sua esposa uma delas. Advertia para que não fosse para casa naquela tarde pois ela poderia ter se refugiado lá.

Por instantes sentiu o sangue gelar e o coração acelerou em um ritmo nunca antes experimentado. Virou-se devagar e a viu parada na porta da cozinha enquanto o celular soltava-se de suas mãos suadas e espatifava no chão. Ouviu uma vez mais a voz suave da esposa:

- Onde estão meus bebês? Você levou os meus bebês....

Começou a caminhar devagar em sua direção enquanto colocava a mão no bolso do roupão e retirava a arma pequena, a mesma que ele lhe comprara no início do casamento quando viajava muito a trabalho e ela ficava sozinha em casa. Os cabelos molhados pingando na gola, os olhos vidrados no rosto sem expressão.

Sentiu uma dor aguda em seu abdômen antes de tombar sobre o tapete. De relance viu pedaços do copo estilhaçado e o sangue se misturando ao gelo que derretia.


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