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Era outono de 1881 quando a comitiva real chegou ao Santuário de Nossa Senhora Mãe dos Homens.
Os criados bem treinados encaminharam as caixas pessoais da realeza para a ala de visitas ilustres, enquanto as demais caixas eram levadas para a ala dos empregados. A comitiva era das maiores que por ali haviam chegado.
Joana trabalhava no casarão desde bem o ventre da mãe. Nasceu sabendo da limpeza, depois da cozinha, temperos e chás. Era ela a responsável pelos pratos dos ilustres e com zelo e responsabilidade distribuía ordens na cozinha.
Genebaldo, o marido, também cria do santuário, conhecia a mata e os bichos como nenhum outro, e as muitas histórias contadas e repetidas ao pé do fogo, entre eles, porque visita não havia de querer saber daquilo não. E, se não cuidassem e espalhassem os acontecimentos, dariam com a zanga dos patrões.
Depois de se refrescarem, o Imperador Dom Pedro II e a Imperatriz Tereza Cristina apreciaram a canja de galinha e legumes, maionese de peixe, bife de boi ao molho madeira, codornas ao molho de vinho do Porto e trufas. Pães recém-saídos do forno, cujo aroma se fazia inebriante, acompanharam os pratos. O jantar foi harmonizado com vinhos portugueses e franceses e encerrado com um delicioso pudim feito com biscoitos caseiros, camadas de doces de frutas e creme.
Após o jantar, a conversa, regada a licor, se deu sobre os muitos relatos do conhecido naturalista francês Saint Hilaire, o que de fato motivara a expedição para conhecer a região chamada de Caraça, o desfiladeiro. O Imperador estava excitado para saírem no dia seguinte logo cedo. Em dado momento não se conteve:
- Quero ver a quantas anda a construção do órgão – disse levantando-se.
- Senhor Imperador, será um prazer conduzi-lo, embora o Padre Boavida esteja em outras terras cumprindo sua vocação missionária. Ele poderia lhe dar explicações detalhadas sobre a sua obra – disse Dom Leandro o conduzindo.
Dirigiram-se então para a oficina onde o monarca admirou a obra do sacerdote que, mesmo ainda em fase de montagem, mostrava a excelência das madeiras utilizadas, o cedro vermelho, o pinheiro dos canudos e os jacarandás vermelho e preto, configurando já o que viria a ser a engenhosa construção.
Foi nessa noite que anotou em seu diário a intenção de presentear a Igreja de Nossa Senhora Mãe dos Homens com um belo vitral. Encomendaria da França. Estava decidido.
Clareava quando finalizavam o café da manhã. Admirava os meninos, alunos do colégio, enquanto se alimentavam para começar as atividades do dia e lembrou da breve conversa sobre filosofia e teologia que tivera com um pequeno grupo na biblioteca. De forma especial, o espaço chamara sua atenção com a quantidade de obras raras que dispunha.
No pátio, as montarias, já arriadas, aguardavam. Ao Imperador foi destinado um belo alazão, porém, ao montar, soltou-se a mola do estribo quase o levando ao chão. Foi imediatamente substituída, mas o cavalo estava, pela agitação geral do pátio, bastante arisco. Sem pestanejar, preferiu montar uma besta.
A mata se revelava à medida que avançavam na trilha, um misto de Mata Atlântica e Cerrado, uma beleza se descortinando com árvores variadas, muitas adornadas com liquens alaranjados, bromélias, orquídeas e pequenos animais que, assustados, fugiam.
Pararam em um vale, à beira de um rio, para que os animais descansassem e eles pudessem ficar de pé um pouco. Ao longe, a bela cascata enfeitava a paisagem. Adiante, desconfiado, um veado campeiro bebia água. Retirou da sacola seu caderno e escreveu: “Estou satisfeitíssimo com o Caraça. Só o Caraça paga toda a viagem a Minas”.
Percorreram um longo trajeto nas redondezas do colégio, pararam em cachoeiras, poços e grutas e contemplaram a fauna dos dois biomas que conviviam muito bem. O Imperador colheu muito murici que havia experimentado no licor na noite anterior.
Ao regressarem, resolveram se refrescar no poço formado na cachoeira próxima. A água gelada no final da tarde era revigorante e nesse mesmo local os alunos tomavam seu banho matinal, logo cedo, antes mesmo do sol esquentar suas águas geladas, bom para energizar e dar ânimo e disposição.
No retorno, enquanto contornavam a habitação dos empregados, o Imperador escorregou em uma pedra lisa que delimitava o caminho, acertando as costas no chão. Foi carregado por alguns homens para o casarão e permaneceu na cama naquele restante de dia, não deixando de relatar em seu caderno as aventuras vividas até ali e como ouvia a voz de Deus no silêncio da serra.
Estava cochilando quando ouviu um uivo muito próximo de sua janela. Devia ser o lobo-guará, havia lido sobre ele no material de Saint Hilaire, um lobo que possuía pelos cor de fogo, longas e elegantes patas e tinha hábito solitário quando não acompanhado da fêmea.
O desejo de se levantar para espiar a janela foi contido pois a dor irradiou pelas costas. Outro uivo se fez ouvir junto à batida na porta. Um vulto alto, cabelos longos cobertos com um tecido que lhe tampava parte do rosto entrou devagar, carregando uma bacia e um bule que emanava um aroma de ervas.
- Com sua licença, Imperador. Fui chamada à casa para curar o ferimento que se alojou em sua sombra.
-E quem é você, mulher? - Perguntou intrigado, enquanto a mulher parecia deslizar pelo chão indo de encontro à cama.
-Eu sou eu. Curo ou não as enfermidades neste espaço e nasci no tempo antes do tempo, por isso estou aqui.
Um frio repentino tomou conta do aposento e ele pensou em gritar por alguém, mas aquelas paredes robustas não deixariam sua voz ir a qualquer lugar.
Ela continuou:
- Vi quando o alazão tentou jogar você no chão. Seus olhos fitaram os olhos do Imperador e foi quando ele percebeu sua cor amendoada e os cabelos cor de fogo. O restante do rosto permanecia tampado.
Do bule despejou água quente sobre as ervas da bacia. O aroma se espalhou rapidamente pelo quarto, abriu a janela e saiu pela noite despertando outro uivo, dessa vez mais próximo e alto.
-O que...o que está acontecendo...como me viu no pátio essa manhã?
-Ora, eu estava lá. Estou sempre aqui e ali. Ouço, vejo, sinto o cheiro. Sei de tudo.
-Esse uivo... gaguejava enquanto o uivo se tornava insistente e muito próximo.
-Não se ocupe dele. Pense em você. No que está fazendo, no que pretende, no que fez. Acha que é suficiente? Já não é hora de ir?
Aproximou-se da cama e, sem o tocar, virou seu corpo deixando a área afetada descoberta.
O Imperador sentiu algo roçando sua pele e as plantas quentes foram despejadas sobre ele. Deslizavam sobre seu corpo com vigor, no início produzindo desconforto, que foi substituído por alívio e uma sensação de relaxamento profundo.
Ele, mais uma vez, foi virado e se viu assentado na beirada da cama.
A curandeira estava de pé em sua frente, não havia mais bacia, bule ou ervas e o tecido que a cobria também desaparecera.
-O tombo na pedra foi seu último aviso. Já apreciou o santuário, a serra e fez suas anotações. Está na hora de voltar para sua terra – disse, fitando-o com os olhos frios onde ele podia ver muitas águas.
O Imperador, estarrecido, olhou pela janela ao ouvir novamente uivos e avistou dois lobos correndo juntos em direção à noite escura.
Meses depois, chegou ao colégio a notícia de que o Imperador havia abdicado do trono brasileiro e retornado a Portugal.
Texto produzido no Clube do Contista
@casadocontista