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O Toque da Brisa

  • Writer: Ana Paula Maciel Vilela
    Ana Paula Maciel Vilela
  • Aug 17, 2022
  • 6 min read

Updated: Oct 17, 2023


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Imagem Unsplash por kristina Kutlesa @kristina001



O ranger estridente das rodas no asfalto e o baque seco da cadeira de rodas se chocando contra o painel interrompeu a viagem do ônibus 6515 no início daquela tarde de segunda-feira.

Passos apressados atravessavam o corredor salpicado de pipocas que levava à recepção. Alguém as deixara cair ali e atraiam pombas e passarinhos. Crianças e mães aguardavam os terapeutas que a cada meia hora buscavam o próximo paciente para o tratamento no ambulatório de reabilitação.

Eu trabalhava na instituição há muitos anos, as conhecia por nome, sobrenome, data de nascimento, nome dos pais e irmãos, preferências e até pelo endereço. Uma das modalidades de atendimento era a visita domiciliar. Era programada com antecedência e uma equipe multidisciplinar realizava o atendimento da criança para auxiliar a família, de acordo com o contexto em que viviam, a seguir as orientações para a melhor evolução ou manutenção do quadro clínico da criança ou adolescente.

Quando visitamos a casa de Doralice, a Kombi parou na entrada de um beco íngreme. Aderval, o motorista, apontou para o alto e disse:

-Meninas, a família mora na penúltima casa à esquerda. Preparem para a subida.

Atenta aos passos, com cascalhos se soltando e rolando pela rua de terra batida, enxugando de tempos em tempos o suor que escorria pela testa, subi com as colegas, concentrada e pensativa no que devia ser para aquela mãe que percorria esse trajeto com uma quase adolescente, cadeirante, sempre que precisava sair de casa.

Quando alcançamos o endereço, ofegantes, paramos em frente a um portão de ferro enferrujado. A casa, bem simples, no reboco, contrastava com o colorido do pequeno jardim que margeava o caminho largo e marcado pelas rodas da cadeira e que levava até a rampinha em frente à porta.

As cores variadas das roseiras, girassóis, palma, cravo, russélia, camarão amarelo e um manacá repleto de flores me deixaram encantada! No canto, provavelmente o local mais ensolarado, uma bacia se equilibrava sobre um toco onde se via cebolinha, salsinha, manjericão, orégano e um pequeno pé de couve.

Ainda hoje lembro com carinho daquele jardim e da família. Maria Odete cuidava da casa, do marido e da filha única da forma mais amorosa que já conheci em minha vida.

Naquela tarde abri a porta da recepção para buscar Doralice para o atendimento e estranhei não a ver sorridente com uma flor qualquer na mãozinha fechada. A mãe não faltava aos atendimentos a não ser por uma boa razão.

Caminhei de volta para meu setor quando ouvi o toque do telefone.

Dentro da sala comecei a fazer o relatório dos atendimentos do dia quando a secretária entrou apressada. A ligação era para mim e tinha relação com a falta de Doralice.

-Dona Ana, o ônibus...a Doralice está no pronto socorro...A Maria está em choque... - a voz do homem, entrecortada entre susto e medo não me deixava compreender.

-José Antônio, tente respirar e se acalmar um pouco, não estou conseguindo entender.

Ouvi os soluços do homem angustiado do outro lado e dei a ele o tempo que precisava.

- Dona Ana, elas estavam indo para os tratamentos e aconteceu um acidente com o ônibus. A Maria não conseguiu segurar a cadeira e ela bateu com a menina, dona Ana, ela bateu lá na frente. A menina machucou muito....

- Em qual hospital vocês estão? - com o coração batendo na garganta, a mão suada segurando o telefone perguntei enquanto me assentava.

- No Hospital Geral. A Maria machucou os braços ao tentar segurar a cadeira quando o ônibus tentou frear. Está cheio de gente aqui, uns machucados e outros que estavam no ônibus e vieram para ajudar.

- Tente ficar calmo, vou fazer umas ligações e logo estarei aí – falei com ele já desligando e discando o ramal da assistente social. Ela não estava. Liguei para coordenadora e solicitei a liberação para ir ao hospital pois já estava quase no meu horário de saída e iria no meu carro.

No trajeto, enfrentando o trânsito carregado do final da tarde, voltei ao dia da primeira visita domiciliar que fiz na casa de Doralice.

Depois que admiramos o jardim, batemos palmas para chamar a Maria Odete que saiu muito sorridente pela porta fazendo muita festa para as “visitas”.

A casa chamava a atenção pela limpeza e pelo aroma delicioso que vinha da cozinha.

Havia um pequeno sofá, uma mesinha sobre a qual estava a televisão e na parede acima um quadro do sagrado coração de Jesus. Na parede oposta um quadro com uma foto linda de Doralice de pé em um parque, bem pequenininha, dando as mãos para um pai e mãe igualmente sorridentes. Ao lado, outro quadro com uma foto dela na cadeira de rodas com seu sorriso assimétrico, os braços finos e rígidos sobre o colo e, entre os dedos de uma das mãos, um hibisco laranja que combinava com as fitas em seu cabelo preso em duas marias-chiquinhas.

Doralice havia contraído meningite aos dois anos, idade em que o cérebro estava ainda em desenvolvimento e houve uma lesão cerebral, por isso era atendida na instituição. Ela não falava mas emitia sons conhecidos pela mãe como sendo de agrado ou desagrado e, dependendo da intensidade, a mãe sabia exatamente o que a filha precisava. Se comunicavam assim, pelos sons, olhares e pelo sorriso doce e assimétrico por onde uma baba viscosa estava sempre a escorrer.

Na cozinha uma pequena mesa estava posta com uma toalha xadrez com copos, uma jarra de suco e o bolo cheiroso coberto com um paninho pintado. Tudo com muito capricho.

Doralice estava na sala, sorridente como a mãe e das mãos pendiam várias flores de hibisco, uma para cada profissional.

Chegando ao pronto socorro se intensificou o som das ambulâncias e minha preocupação aumentou. Deixei o carro no estacionamento e caminhei a passos rápidos para a entrada. Dei o nome da paciente e explicaram que apenas uma pessoa poderia permanecer com a criança. A mãe estava com ela. Por ser profissional da saúde poderia entrar por quinze minutos. Procurei entre as várias pessoas assentadas nas muretas da entrada até encontrar José Antônio desolado, com as mãos segurando a cabeça, os cotovelos sobre os joelhos, olhando para o chão.

Com os olhos inchados de tanto chorar, o pai explicou o que sabia, o que tinha ouvido de um e outro passageiro do ônibus e de como sua filha, o seu bebê se encontrava em um estado muito ruim. Havia ficado com a filha enquanto a mulher era atendida para certificarem de que não havia nenhuma fratura e ser medicada. Estava chocado com o estado da filha com várias fraturas e o médico havia explicado a ele que a situação dela era bastante delicada.

Caminhei para a entrada do prédio e, depois de apresentar os documentos e crachá da instituição, apanhei o elevador para a enfermaria. O cheiro da dor, doença e sofrimento invadiu meus pulmões e, com meu corpo tremendo avistei Maria Odete assentada com a cabeça recostada na parede, os olhos fechados.

- Maria....

Ela abriu os olhos e se levantou em um salto, me abraçando enquanto suas lágrimas molhavam minha blusa. Seu rosto estava marcado pela dor e apreensão.

A abracei sem falar nada, tentando passar a ela o amor e aconchego que ela tanto precisava.

Na cama aquele corpo tão franzino, os cabelos pretos soltos e espalhados pelo travesseiro, um corte profundo em sua testa. Os olhos fechados, os braços com talas e as pequenas mãos com cortes e inchaço. Nas pernas talas também faziam a imobilização já que a severa rigidez muscular não possibilitava nenhum procedimento diferente.

Me assentei na cadeira e, atenta, acompanhava sua respiração, o peito subindo e descendo em um ritmo tranquilo que mostrava que estava isenta de dor. Passei com delicadeza a mão sobre seus cabelos, retirando uns fios que teimavam em escapar para próximo dos olhos e cantarolei bem pertinho a sua música preferida:

- “Alecrim, alecrim dourado

Que nasceu no campo

Sem ser semeado.

Foi meu amor

Que me disse assim

Que a flor do campo

É o alecrim...”

Um gemido foi ouvido e Doralice abriu os olhos fitando dentro de mim, encontrando minha alma. Com certa dificuldade sorriu, aquele sorriso assimétrico tão conhecido e, apertando os lábios de uma maneira que sabíamos exatamente o que significava, me mandou um beijo. Foi como uma brisa suave roçando todo meu ser de maneira terna como jamais senti.


Conto publicado na antologia "O Beijo" do Clube de Leitura da Casa Amarela coordenado por Roseana Murray

Confecção de Jiddu Saldanha



 
 
 

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