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  • Writer's pictureAna Paula Maciel Vilela

Recomeço

Updated: Oct 17, 2023



Imagem por Ana Paula Maciel Vilela


O cascalho rolou pela vala à beira da estrada, chutado pelos passos arrastados de Francisco. A terra estava seca àquela época do ano com a estiagem brava e a poeira se levantava à medida que ele se distanciava da sede. Cabisbaixo, sentia no corpo todo uma espécie de rigidez que machucava e lhe fazia doer as juntas. O vento de agosto sacudia as árvores e o farfalhar das folhas fazia ressoar em sua mente as palavras que ouvira de Gustavo e lhe deixava seca a boca. Parece um pesadelo...como dar uma notícia dessa para o pai e avô...E Mara, tão feliz com as garrafadas, as plantas aromáticas com tanta procura na feira. Sentiu um soco no estômago e se encostou em uma árvore para vomitar.

De longe avistou a casa, a fumaça saindo pela chaminé. Era dia de a mulher preparar as tinturas e xaropes de arnica, mil em rama, poejo e guaco e o molho de tomate, que ficava apurando no fogo lento e manso do fogão à lenha até ficar bem grosso. A casa ficava perfumada e os sentidos aguçados com o aroma e o cantarolar feliz de Mara enquanto trabalhava. Avistava também as árvores plantadas ao longo de dez anos que davam boa sombra, retinham a umidade no solo e quebravam o vento que vinha da direção dos pastos onde não se via uma árvore sequer. As duas fileiras de hortas separadas por bananeiras e eucaliptos, seguindo todo conhecimento agroflorestal, tomavam o sol da manhã.

Quando começou a participar dos encontros na cooperativa, aprendeu que produzir alimentos tem relação direta com respeitar as leis da natureza e tudo o que Deus criou. Isto estimulou sua autoconfiança e pautou sua vida fazendo-o acreditar que fizera a escolha certa de ficar na zona rural apesar da insistência dos primos para que fosse arrumar emprego na capital. Ele até tentou, matriculou-se em um curso de contabilidade, mas não suportou o ritmo alucinante da cidade, as pessoas caminhando e falando rápido no horário que saia para almoçar nas redondezas da Praça Sete. Tentava se refugiar no Parque Municipal, levava a marmita e escolhia um banco afastado da rua. Era o único momento de refrigério no dia.

Começou a adoecer de saudade da natureza, do canto do galo Agnaldo ali, bem embaixo da janela do seu quarto. Abandonou o curso e voltou para ajudar o pai a administrar o pequeno empreendimento que estava guardado no coração de ambos há bastante tempo. Quando o pai começou a trabalhar com o Sr. Noraldino ficavam em uma casinha no lado norte da sede, uma parte abandonada, terra compactada cheia de vassourinha-branca e capim gafanhoto que sinalizavam terra fraca, lavoura abandonada e solo raso. Foi muito trabalho para começar a germinar alguma semente, fazer uma hortinha com mandioca, moranga, banana e tomate, o básico para alimentar a família. Mas aos poucos a terra foi sentindo o cuidado, o amor das mãos do pai e do avô e foi se transformando.

O patrão, nortista como o pai, empregou o conterrâneo e foi sempre amigável com ele e a família. Deu as sementes para começarem a horta, emprestou a camionete velha para levarem os produtos na feira todos os sábados e ajudava no que precisava. Tornaram-se amigos.

Há uma semana tudo mudou. Noraldino sofrera uma queda do cavalo, ficou em coma alguns dias e faleceu no hospital da capital. Foi um choque para eles e um golpe para o pai que se afeiçoara ao patrão como a um irmão mais novo. Naquela manhã, fora chamado à sede e, Gustavo, o genro, sem rodeios, comunicou que teriam que sair das terras; arrendaria tudo para soja. Daria a eles um mês para providenciarem a mudança. Para onde? Isso não era problema dele.

Naquela noite, a luz do lampião tremulava mais do que o normal. A varanda estava escura, Francisco fitava o chão de terra batida e suas lágrimas, uma a uma, irrigavam um recomeço. A voz embargada do pai quebrou o silêncio que se abatera sobre eles. ̶ O Armando da cooperativa tem um barracão para alugar. Amanhã vou na cidade conversar com ele. A gente vai para qualquer lugar. Depois a gente arruma uma terrinha e começa de novo. A gente está vivo, meu filho. E isso é bom.


Conto publicado na antologia "Histórias para Ler à Beira do Abismo" organizado por Tiago Novaes- 2018


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